Em meados de 2023, a ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, externou preocupação a respeito de licitações para contratação de serviços com dedicação exclusiva de mão de obra, comumente chamados de “serviços terceirizados”.
O entendimento tradicional do TCU (Acórdão 2101/2020-TCU-Plenário) apontava que, nos editais de licitação, não seria permitido determinar a convenção ou acordo coletivo de trabalho a ser utilizado pelas empresas como base para a confecção das respectivas propostas, pois a vinculação das empresas a sindicatos não se dá pelas categorias profissionais envolvidas na prestação dos serviços buscados pela administração, mas pela atividade principal da empresa licitante. A Nota Técnica SEI 14.534/2023/MGI, que refletia o posicionamento da ministra, indicava que o modelo atual das terceirizações gera dificuldades gerenciais ao órgão contratante, em razão da existência contratos envolvendo categorias profissionais similares com benefícios completamente distintos – o que, em alguma medida, decorreria do citado entendimento do TCU.
Ao ter ciência dessa questão, o então presidente do TCU, Bruno Dantas, propôs que a Secretaria-Geral de Controle Externo avaliasse a possibilidade de os órgãos da Administração Pública Federal indicarem, nos respectivos editais para contratação de serviços terceirizados com dedicação exclusiva de mão de obra, a convenção coletiva de trabalho (CCT) que melhor se adequa à categoria profissional do objeto contratado, evitando que os licitantes formulem suas propostas de preços com base em outras convenções coletivas conforme o enquadramento de sua atividade principal.
A título de contribuição com a avaliação que seria realizada pelo TCU, tecemos, em texto anterior (publicado em 21/9/2023), algumas considerações sobre o tema.
Destacamos, inicialmente, o acerto do entendimento tradicional do TCU no sentido de não ser lícito impor aos licitantes a obrigatoriedade de elaborar a proposta com base na norma coletiva de trabalho usada como parâmetro para o orçamento estimado da contratação.
A solução de fixar a vinculação sindical acabaria por implicar demasiada restrição ao universo de licitantes.
Isso porque, na dinâmica própria da orçamentação das licitações destinadas a contratos com dedicação exclusiva de mão de obra, instrumentalizada por meio de planilha de composição de custos, é imperativo estimar os valores dos salários que serão praticados pela contratada na prestação dos serviços. É o mais relevante item de custo da planilha.
Para orçar os salários, a administração utiliza a informação que até então, nessa fase de planejamento da contratação, detém: as características da atividade do trabalhador que prestará o serviço. É a partir delas que identifica o instrumento coletivo de trabalho que, por suposição, representa os interesses da categoria profissional que o trabalhador integra.
Ocorre que, em tese, é possível que exista um mesmo cargo – com atribuições similares – em mais de uma categoria profissional. Cabe lembrar que o conceito de categoria profissional é definido no § 2° do art. 511 da CLT:
“§ 2º A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas, compõe a expressão social elementar compreendida como categoria profissional”.
Dado que o enquadramento sindical, no que diz respeito aos trabalhadores, é definido pela categoria profissional, nos termos do art. 570 da CLT, seria possível, então, haver sindicados diversos potencialmente representativos do mesmo tipo de profissional. Em consequência, seria possível haver também mais de uma CCT apta a servir de amparo ao orçamento.
Imagine-se uma licitação para o cargo de recepcionista. Em tese, seria possível haver recepcionista em categorias profissionais diferentes – relacionadas às atividades de turismo e às atividades de serviços gerais de apoio, por exemplo. Suponhamos que existam pelo menos duas convenções, das quais participaram os sindicados representativos das referidas categorias profissionais, que fixem salários diversos para o cargo de recepcionista. Assumamos, ainda, que a convenção da qual participou o sindicado dos profissionais de turismo fixe salários mais altos do que a outra.
O contratante não conhece de antemão todo o universo de licitantes. Muito menos está apto a prever com precisão os possíveis enquadramentos sindicais e as normas coletivas cogentes. A esse propósito, calha lembrar que, quanto aos empregadores (as empresas que participarão da licitação) estabelece o § 1° do art. 511 da CLT que é a categoria econômica que determina o enquadramento sindical.
Pois bem. O contratante deve escolher uma das normas coletivas identificadas, potencialmente representativas do trabalhador (no caso, recepcionista). E deve fazê-lo como condição para orçamentação.
Eventual vinculação, no edital, a determinada convenção, no nosso exemplo, poderia restringir indevidamente o universo de potenciais licitantes. Caso seja escolhida, entre as normas coletivas, a convenção do turismo, de maior remuneração, e o edital traga vinculação expressa a ela, seriam excluídas, indevidamente, empresas que poderiam prestar o serviço observando o valor remuneratório expresso na convenção fixada, mas que estão formalmente inseridas no âmbito normativo da convenção de serviços gerais. Caso seja eleita a norma coletiva de serviços gerais, as empresas sujeitas à convenção de turismo, que fixa piso superior, estariam também impossibilitadas de participar, sob pena de infringência à sua própria norma trabalhista.
A vinculação da norma coletiva no edital, portanto, não nos parece uma solução adequada, porquanto pode ferir princípios caros ao processo licitatório. Ademais seria dependente de um conhecimento muito profundo do mercado fornecedor, cenário que dificilmente se observa nas licitações.
A partir dessas considerações, fizemos (no citado texto anterior) a seguinte proposta:
Mas se vislumbra outra forma de mitigar os efeitos nocivos relatados na comunicação do TCU: a Administração poderia fixar no edital não a CCT, mas apenas dos valores remuneratórios nela indicados. Fica a convenção, nos autos do processo, como insumo da pesquisa de preço e justificativa do valor mínimo, mas não se proíbe a participação em empresas que se insiram em outras convenções, mas estejam dispostas a remunerar os profissionais por aqueles valores.
Nesse sentido, é certo que não se pode obrigar uma empresa a cumprir CCT da qual não participou, embora ela possa fazê-lo espontaneamente. Mas sequer se trata propriamente disso: a empresa licitante somente estaria obrigada, em sua proposta, ao salário fixado no edital, observando, em tudo mais, a própria convenção. Naturalmente, para que esse expediente seja viável, o salário fixado no edital deve ser igual ou superior ao piso obrigatório. Por isso o cuidado, que também se sugere aqui, de ser adotado no instrumento convocatório o maior salário entre os pisos encontrados para o cargo a ser licitado.
Voltemos a nosso exemplo hipotético, em que assumimos, agora, que o contratante optou pelo maior salário entre as convenções identificadas na sua pesquisa – a dos profissionais de turismo. Consideremos que tenha vencido a licitação empresa sujeita à convenção de serviços gerais, diversa da utilizada como parâmetro para o edital. A diferença salarial a maior que a vencedora da licitação se dispusesse espontaneamente a oferecer seria mantida ao longo da vigência contratual, sendo os salários corrigidos normalmente pelos reajustamentos regulares, consoante os percentuais concedidos na convenção que lhe é obrigatória – a de serviços gerais – que, entretanto, incidem sobre o valor que a empresa acordou pagar, e não sobre o piso da categoria.
A estipulação de piso de remuneração no edital, com base na CCT eleita pelo órgão, parece atender aos reclamos relativos à má prestação de serviços decorrente de baixos salários; e tem o mérito de não restringir indevidamente a competitividade dos certames, possibilitando que empresas regidas por outras CCTs participem da avença e arquem, se assim desejarem e se comprometerem, com maiores remunerações. Por fim, é uma solução benéfica para a isonomia entre os licitantes, por fixar bases referenciais mínimas para o principal elemento de custo do contrato.
Passado mais de um ano, em 19/6/2024, o TCU, por meio de resposta a consulta realizada pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, firmou o seguinte entendimento (Acórdão 1207/2024-Plenário):
9.2.1. decorre de previsão legal, estabelecida no art. 511, §§ 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, o entendimento consignado na jurisprudência desta Corte de Contas, no sentido de que nos editais de licitação para contratação de serviços terceirizados com dedicação exclusiva de mão de obra não é permitido determinar a convenção ou acordo coletivo de trabalho a ser utilizado pela empresas licitantes como base para a confecção das respectivas propostas;
9.2.2. não obstante, em tais licitações, é lícito ao edital prever que somente serão aceitas propostas que adotarem na planilha de custos e formação de preços (PCFP) valor igual ou superior ao orçado pela Administração para a soma dos itens de salário e auxílio-alimentação, admitidos também, a critério da Administração, outros benefícios de natureza social considerados essenciais à dignidade do trabalho, devidamente justificados, os quais devem ser estimados com base na convenção coletiva de trabalho paradigma, que é aquela que melhor se adequa à categoria profissional que executará os serviços terceirizados, considerando a base territorial de execução do objeto;
O primeiro item transcrito está perfeitamente alinhado a nossa proposta anterior, uma vez que reafirmou a jurisprudência tradicional no sentido de não ser permitido determinar a convenção a ser utilizada pelas licitantes como base para suas propostas.
No entanto, com relação ao segundo item, apesar de uma coincidência parcial com o que propomos – a possibilidade de previsão, em edital, da aceitabilidade apenas de propostas que adotarem na planilha de custos e formação de preços valor igual ou superior ao orçado pela Administração para a soma dos itens de salário e auxílio-alimentação –, o TCU foi além. Assentiu com a possiblidade de que, a critério da Administração, fossem fixados valores mínimos para outros benefícios de natureza social, os quais devem ser estimados com base na CCT paradigma. A última parte do segundo item transcrito faz surgirem alguns problemas práticos, sobretudo relacionados à repactuação dos ajustes – instrumento de reequilíbrio econômico-financeiro utilizado nos contratos firmados em regime de dedicação exclusiva de mão de obra, conforme dispõe o art. 6° inciso LIX da Lei 14.133/2021.
Não se questiona o fato de que a repactuação é a modalidade de reequilíbrio contratual mais segura e justa, no que diz respeito à álea ordinária. Enquanto o reajuste por índice pressupõe uma defasagem nos preços contratados aderente à inflação, a ser corrigida de forma linear, a repactuação é precisa e meticulosa – atinge somente os custos efetivamente majorados. Ela se processa por meio da análise da variação dos custos unitários que compõem a remuneração da contratada, a partir da contabilização da evolução individual dos itens.
Ocorre que, para apurar e analisar a evolução dos custos individuais, ou eventual inclusão/exclusão de novo custo, é indispensável haver um parâmetro objetivo – um ponto de partida e de chegada para os cálculos da repactuação. Esse parâmetro deve ser, necessariamente, o acordo, convenção ou dissídio coletivo indicado na proposta da contratada.
Se há novo instrumento coletivo a indicar novos valores para os benefícios trabalhistas (aos quais correspondam custos na planilha que dá base ao contrato), ou novas obrigações que se imponham à contratada, altera-se, para mais, a composição de custos do contrato. Não por outra razão, somente é viável processar repactuação em contratos de dedicação exclusiva de mão de obra.
Dito isso, deve-se compreender que não é a convenção paradigma que orienta a repactuação. É a convenção indicada na proposta, à qual efetivamente se vincula a contratada, porque é ela que determina as obrigações trabalhistas a serem observadas no ajuste. É essa a premissa para ocorrência dos problemas práticos expostos a seguir.
Para fins de repactuação, o desprendimento da convenção paradigma, na formulação do preço, é algo relativamente simples de ser contornado no caso dos itens salário e auxílio-alimentação, uma vez que todas as convenções os preveem. Nesse caso, aplicam-se aos itens os percentuais de variação previstos na convenção ao qual o contratado está realmente vinculado. No entanto, o quadro muda quando se fala de “outros benefícios de natureza social”.
É bastante possível que a convenção à qual o contratado realmente está vinculado simplesmente não preveja esses tais benefícios. O que fazer? Não haverá percentuais estabelecidos em sua convenção, de modo a fixar o critério para o acréscimo anual, porque a CCT não os prevê. A solução que vislumbramos – e que não é ideal – é recorrer à convenção paradigma e suas sucessivas alterações, em uma espécie de gambiarra: a CCT paradigma forneceria os percentuais a serem aplicados somente ao benefício não previsto na convenção realmente aplicável. A alternativa seria deixar o benefício congelado, o que desvirtuaria completamente o sentido da decisão do TCU.
Diz-se “gambiarra” porque há um ponto nebuloso nessa solução: a empresa vencedora da licitação acaba sendo obrigada a arcar com aumentos sucessivos de um benefício fruto de uma convenção (paradigma) ao qual ela não está juridicamente vinculada – sequer participou de sua pactuação.
Melhor seria, portanto, que a Corte de Contas tivesse restringido a fixação do entendimento à licitude da previsão, em edital, de que “somente serão aceitas propostas que adotarem na planilha de custos e formação de preços valor igual ou superior ao orçado pela Administração para a soma dos itens de salário e auxílio-alimentação”. A ampliação comentada tem potencial de gerar problemas práticos, para os quais há uma solução, cuja fragilidade jurídica, no entanto, é evidente.
Por fim, cabe lembrar que o entendimento consolidado no Acórdão 1207/2024-TCU-Plenário parece ter inspirado o Decreto 12.174, de 11 de setembro de 2024, que dispõe sobre as garantias trabalhistas a serem observadas na execução dos contratos administrativos no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
A norma, a propósito, adotou, no seu art. 5°, § 1°, uma redação pouco acurada para tratar da matéria, cuja interpretação pode conduzir a outras dúvidas. Essa previsão pode exacerbar riscos e incertezas quanto à operacionalização das futuras repactuações, mas esse é assunto para outro artigo.